quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Um olhar sobre o mundo XIX



Estou morta....
A minha vida acabou.
Porque é que vocês insistem?
Parem!
Parem tudo!
Aceitem!
Morri...


Eu realmente não sei como se diz...
Como se diz a um marido
e aos nossos filhos
"Desistam de mim",
mas vou tentar assim:


Por mais que queiram acreditar,
eu já não estou viva,
já não estou realmente,
acreditem!


Vocês sabem como sou...
Para mim viver é passear, viajar, ouvir boa música,
dar-vos mimos, cozinhar para vocês e com vocês...
Não vêem que já não posso fazer nada disso?


Sobrevivo ligada a uma máquina.
Como é isso viver?


Filha lembras-te de quando foste operada?
Para te retirarem o apêndice...
Tu só dizias que querias fechar os olhos e não acordar mais,
de tantas dores que tinhas...
No fim da operação fomos ao Santini
comer três enormes bolas de gelado cada uma.


Sei que acreditas que é o que vamos voltar a fazer...
Gostava de acreditar também.
Mas não vai filha...
Não vai! Desculpa!

Não sabem
(vocês não tem noção)
o quanto me custa ver-vos nesta angústia,
virem aqui e ficarem aí sentados a olhar para mim.
Neste sítio...
Neste sítio que cheira a hospital, porque , de facto, o é.

Não aguento ver-vos com essa esperança 
de que um dia subitamente tudo vai ficar bem.

Quero que sigam as vossas vidas!
O mais rápido possível!
Já passaram dois anos...
Já chega!


Estão a perder o vosso tempo,
a perder a vossa própria vida
por algo que já não é vida.


Já nem sou eu.
É só uma máquina nesta sala e um corpo não morto,
mas também não vivo...
Sou nada!
E estou farta!
Não quero mais não ser nada!
Por mais que custe,
desistam!
Desistam agora!

Vou propor o seguinte :
Desliguem as máquinas e vivam.
Vivam muito!
Eu deixarei de ser este nada que perdem tempo a observar
e serei a mãe feliz,
olhando-vos,
de longe ou de perto,
viverem a vossa vida.


Matem este nada!
Deixem-me ser algo!
Deixem-me viver de outra forma!
Desliguem as máquinas!
Por favor! Imploro-vos!
Desliguem as máquinas!
Desliguem as máquinas!


Com muito carinho desde ser que já não o é.

Sempre vossa mãe.

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