Cartas a todos nós


Passeio pelas ruas e tento pensar como se fosse outra pessoa, com uma história de vida completamente diferente da minha...
É isso que vou fazer a partir de hoje, criar histórias vividas por outras pessoas devidamente identificadas (como a Ana Lúcia ou a Cláudia) e que não tem qualquer relação comigo, pois não passam de inquilinos de uma parte da minha mente...



Sei que nunca percebeste porque é que eu não gostava de ver televisão e,
 ao contrário dos outros meninos que conhecias,
não te exigia o ultimo brinquedo que saiu pelo natal.

Sei que te criou desconforto como é que eu percebi que o cão tinha sido atropelado

e não tinha ido ter com nenhuma cadela bonita como tu dizias.

Sei bem que nunca entendeste porque é que,

ao contrário do meu irmão,
 eu não te exigia coisas de cada vez que iamos ao café ou ao supermercado
e não gostava daquelas histórias banais com finais felizes como as outras crianças adoravam.

Sei bem que nunca entendes-te o como e o porque passava tanto tempo deitado na rede do jardim a olhar o céu ou me deitava no chão do quarto

Ou simplesmente porque gostava de andar descalço no chão,
( na terra, na areia, no alcatrão ou onde quer que fosse).

Sei que nunca percebeste porque era tão pensativo e sereno e te questionava tanto.

Sei que não entendias o porquê de um miúdo de tão tenra idade te questionar sobre as guerras, as pessoas e as suas ideias, as religiões,  o mundo e tudo o que nele se inclui.
Na verdade, sei que isso te incomodava e chateava tremendamente.

Hoje tenho 48 anos,

tu já partiste
e espero que hoje me entendas.
Carlos Alberto


Sai da discoteca sem saber ao certo como,
apanhei boleia até ao centro da cidade,
 caminhei para casa sem saber ao certo que caminho seguir.

Senti a presença de alguém e acelarei a passada.
Ouvi o passo da outra pessoa aumentar de intensidade,
 "devem ser uns grandes pés"  pensei...

Entrei no adro do primeiro prédio que encontrei,
 espreitei para trás
(não vi ninguém) .

Doía-me os pés e tinha medo,
 a minha cabeça parecia navegar por outros lados,
parecia prestes a cair.
 Agachei-me sentando-me nas minhas próprias pernas
e breves segundos depois já tinha aquela faca
 tão carregada no meu pescoço.

Reagi.
Agarrei-lhe o braço,
 teria idade para ser meu pai,
quem sabe se meu avô...

Mandou-me para o chão sem dificuldade,
 espancou-me.
Eu chorava e gritava tentando que alguém fizesse algo...
Ninguém fez!
Ninguém viu!
Se calhar ninguém ouviu...

Naquela noite escura e fria eu fui violada naquele adro de prédio.



Cláudia Torres

Saudades do tempo que nos amávamos
e desejávamos tanto que tínhamos que nos afastar...

Sim, sei que parece estranho,

mas foi sempre assim que lidámos com a nossa paixão :
quando nos desejávamos ao extremo e queríamos estar cada vez mais perto um do outro,
era quando nos afastávamos.

São três da manhã, a minha vontade é telefonar-te

como nos velhos tempos,
porém, mesmo que ligasse
não saberia mais do que dizer para além de um "olá , estás acordado?".

À parte disso, sinto que não posso fazê-lo,

por ti ou por mim, talvez pelos dois ou por nenhum de nós.
Combinamos voltar a afastar-nos...



Margarida Santos

Desde que me lembro, imagino histórias de salvamentos de crianças e desenho-te saindo pelo meio das chamas com crianças sorridentes ao colo, contentes por lhes teres salvo a vida.


Foi assim que sempre me disseram que tinhas morrido!


Passado catorze anos, concluo enfim, que tudo não passou da minha enorme imaginação e da forma mais fácil que a mãe se lembrou para me explicar a tua ausência.
Hoje sei que não passou de uma ilusão, foi uma mentira piedosa para não terem de me dizer com apenas 4 anos,  "o teu pai cansou-se de viver, foi até à foz e atirou-se da falésia"


Maria Teresa

Como podes se quer pensar que tenho um românce com aquele a quem chamo "cunhado" quando ele já nem o é?

E quando o dizes?

 Não te apercebes do quanto é ridículo?
Como podes tu pensar que se trata de inveja
 quando a tua vida é tão triste e neurótica?
A sério!?

Tenho verdadeiramente pena, 

é o único sentimento que consigo sentir, 
para além da vergonha e de uma certa frustração.

Tenho mesmo pena que

, com o passar dos tempos, 
a palavra "amizade" se tenha transformado desconhecida para ti 
e esse teu cérebro esteja tão consumido pelas telenovelas portuguesas 
ao ponto de originar pensamentos tão descabidos.

Sinto uma certa frustração por ver que resta cada vez menos confiança nesta relação 

(não sei bem que lhe chamar,
 mas visto que amizade está fora de questão
 chamemos-lhe relação) 
e uma certa vergonha por poder observar, 
a cada dia que passa, que não me conheces passado vinte e três anos!
Mas, pelo menos, julgava-te ainda minimamente racional...
Enganei-me!

Susana Poares
Ambicionei sempre mais e mais...


Amor? Paixão?
Não!
Família?
Nem pensar. 
Amizades? 
Nem isso.

Nada disso fazia parte do meu ideal de felicidade,
 nada disso me interessava...

Queria um cargo muito bom no emprego, 
uma casa grande só para mim, 
um bom lugar na sociedade,
um olhar forte 
e,acima de tudo, independência.

Hoje  tenho 98 anos,
 nunca tive filhos ou esposo,
 vivi para o meu trabalho
 e agora que sinto a sepultura cada vez mais perto,
 sei que vivi para nada.

(A vida é como uma autoestrada em hora de ponta: todos "lutam" por estar na faixa mais rápida, porém só os mais persistentes o conseguem. No entanto, acabam todos por chegar ao seu destino...Salvo raras excepções)
                                                        Maria Amélia



Cheguei a casa depois de um dia normal,
 os pais tinham discutido de manhã,
 as aulas tinham sido cansativas 
e o trabalho no restaurante também.

Era já tarde, 

larguei a mochila da escola sobre a cama
 e cuidadosamente dei um beijo na testa da Ana 
que há muito que dormia como um anjo.

Desci as escadas e ia ver um pouco de televisão para a sala

 quando o meu olhar se desviou por instantes para a cozinha.

A minha mãe estava estendida sobre o chão, 

olhos negros, cabelo desgrenhado...

Já o meu pai estava agachado junto dela,

 tinha o joelho a sufoca-la e o revólver junto da sua cabeça.

Ela não deitava uma lágrima, nem mesmo um grito...


Ele repetia com a sua voz grossa "Tu não tens noção do que fizeste?"

 e talvez, de facto, ela não tivesse mesmo.

Tinha de acabar com aquilo e realmente acabei.


Sim, silenciosamente agarrei na primeira faca de cozinha que encontrei e mateio-o naquele dia tão estafante para mim...


Sara Vasques


  Cartas a todos nós VIII - Dia D

Era o dia D, 
esperava-o a tanto tempo. 
A bênção das fitas,
 o “adeus” a universidade
 e quem sabe o “olá” ao desemprego.

Alguns não dão muita importância às festas
 e cerimónias da faculdade,
 outros vêm nelas apenas mais uma razão para se embebedarem.

Eu posso dizer que não me enquadro em nenhuma destas duas, 
sempre tive problemas em casa, 
discussões a toda a hora e nunca nadei em dinheiro (nem perto).



Ao contrário de muitos os quais quase adultos
 vi por aqui passar eu nunca obti nada de bandeja,
sempre me esforcei bastante quando queria algo.
 Por isso, enquanto eles iam a festivais o verão todo
 e festas aqui e ali,
 eu trabalhava para um dia poder pagar a minha licenciatura.



Hoje era o fim disso tudo, 
aliás era o fim da primeira fase de sacrifícios. 
Hoje eu ia festejar todos os esforços feitos para poder estar aqui.

Contava com todos os meus amigos ao meu lado, 
imaginava-os a darem me abraços e beijos de saudade. 
A família também, nem que fosse só a minha mãe, coitada, sozinha, também alguns sacrifícios fez.

Não veio ninguém, todos arranjaram algo melhor para fazer à última da hora.

Olhei todos os outros a receberem abraços apertados e congratulações e eu sozinha com a minha pasta na mão.

Soraia Mousinho

Hoje apercebo-me que a minha mãe,
 ao contrário do que eu pensava,
 para além de minha mãe também é  minha amiga.

Nunca falamos muito, 
aliás nesta casa não se fala muito.

Aqui só se discute 
e consomesse tudo o que aquela,
 tão adorada, caixinha no móvel da sala nos apresenta.

Mas bem, voltemos á minha mãe
 que isso é assunto para uma próxima.
No meio de todos estes silêncios e discussões
 cheguei mesmo a pensar que nunca a iria conhecer de verdade
 e que nunca teríamos uma conversa
 que passasse do "olá. como estás?" de cada dia.

Considerava-a até alguém sem uma personalidade formada, 
não sabia uma única música que gostasse ou um simples filme.
 Mas talvez fosse apenas por não a conhecer, lá está.
Ultimamente tem-me escutado e até apoiado o que me tem surpreendido bastante.
Quem sabe um dia sejamos mesmo amigas....

Carolina Sardão

Vendi-me ao espelho,
 vendi-me a ti, 
tentando ser sempre aquilo 
que achava que desejavas que eu fosse.

Inconscientemente comecei por deixar de comer

 tudo aquilo que achava que me tornava assim, 
depois de ver que não tinha obtido qualquer resultado
 passado um mês achei que o ideal seria comer menos.

Deixei de comer!


A Dona Maria chegava, 

fazia o almoço, 
deixava-o na mesa
 e quando ia ás arrumações dela 
eu punha tudo cuidadosamente 
para dentro de um saquinho 
e deixava-o perto de uns caixotes do lixo
 próximos do ginásio e das traseiras do Raposinha
 onde os cães costumam estar  a comer.

Foi preciso perder trinta quilos 

e renovar o guarda-roupa seis vezes
 para a minha mãe se aperceber
 que o meu corpo já era pouco mais que esqueleto.

Só passado oito meses cheguei à conclusão

 que não gostarias de mim pelos meus 65 ou 35 kg
 e que se assim fosse não gostarias de facto de mim.

A minha mãe levou-me ao medico

 e depois fui encaminhada para o psicólogo,
 percebi finalmente quem eu realmente era, 
descobri que tinha muito mais para dar do que pensava
 e o meu corpo nada tinha a ver com isso.

Inconscientemente tinha-me vendido ao espelho,

 tinha-me vendido a ti,
 a quem me olhava e nem me conseguia ver.



Rita Castela



A minha vida já se resume aquele jardim,
Diariamente observo-o através da janela da sala de jantar,
Por vezes aparece uma menina pensativa
a ler ou a escrever,
de outras aparecem miúdos a riscar os muros,
casais a namorar e,
já mais à noite,
grupos de jovens que se riem
como se tivessem esgotado todos os licores dos bares.

Passei por todas essas fases naquele mesmo jardim e,
Por isso, o observo tanto.
(Só não riscava os muros...)
Relembro cada minuto lá passado,
Está tão diferente...

Foi lá que conheci o teu pai,
Não aquele que julgas ser teu pai,
Não aquele a quem pertence a imagem que agora vistes,
Mas aquele que nunca soubeste que existia...
Aquele que amei!

É por isso que te escrevo,
Para te contar,
Agora, tarde e cobardemente,
Toda a verdade,
Passado vinte e dois anos de existires
E pouco tempo antes do meu partir.

Maria Augusta



Diariamente olho para as tuas cartas
e penso : "Queimo? Não queimo?",
por vezes chego mesmo a pensar : "Vou queimar!" ,
depois apercebo-me que ao queima-las
queimarei tudo o que passámos juntos, algo que não quero!

Tenho saudades tuas sabes?

Por mais que o tente esconder de mim própria,
tenho saudades tuas!
E, por isso, te escrevo hoje,
para admitir, aqui e agora,
a ti e mim :
Tenho saudades tuas!

Passaram 32 anos e não houve um único dia

que eu não te amasse, que eu não pensasse em ti...

Pensei em escrever-te variadíssimas vezes,

aliás, eu escrevi!
Escrevi muito até...

Porém a falta de coragem sempre falou mais alto

e eu nunca te cheguei a enviar nada.

Escrevi, escrevi tanto...

Daria para publicar livros e livros
se tivesse algum valor...
Mas são só devaneios e devaneios!
Lembranças e lembranças...

Não deve haver um único caderno nesta casa

que não tenha cartas para ti,
mas nunca tive a tal coragem para te as enviar.

Hoje tive!

Já chegava!
Já passou tempo demais...
Tenho saudades de ti.
Teresa Meneres








Hoje tive insónias,
mais uma vez o António
 não veio dormir a casa e cá fiquei eu.
Tenho orgulho nele,
acho a sua profissão símbolo de força
e coragem também.



Corre estas estradas sem fim


pelo mundo fora
e dá dinheiro a ganhar a empresa x e y e à outra...
Mas e a família?



Passo meses e meses sozinha nesta casa


 grande e sombria,
talvez a última característica se deva à primeira
 ou quem sabe ao facto de estar sozinha, mas que importa?

Já não passeamos como um casal apaixonado
 há mais de quatro anos,
talvez porque já não o sejamos, não sei...

O Manelinho tem seis anos
e já nem se lembra de assistir a essa realidade de pais felizes.
Pobre de ti Manelinho que só vês o teu pai enquanto dorme,
Pobre de ti que achas que a tua mãe não sorri
quando és a sua única razão para o fazer.



Já chega!
Ana Paula

Vagueio pela cidade sem rumo,
vou cumprimentando este e aquele...
A todos chamo de amigos.
E, na verdade, não o são!

Depois de deixar as drogas todos me deixaram também...

Já ninguém me convidava para ir aqui ou ali,
nem à grande festa nem à pequena...
E nem mesmo ao café.
Já ninguém se importava...
Já ninguém queria saber!
Então eu, estúpido, ignorante...
Voltava, deixava e voltava a voltar.

Voltando, voltavam os amigos,

a companhia para o café,
a companhia para vaguear pela cidade
e para fumar em qualquer canto.

Não vou voltar a fazê-lo!

Não vou! Não vou!
Eu  era só mais um...
Mais um sem objectivos...
Mais um que era manipulado,
embora achasse que não.
Embora achasse que era rebelde
e, a cima de tudo, livre.
Eu era mais um, parado no tempo...
Morto talvez.

Não vou voltar! Não vou!

Vou continuar a ser só eu,
 vagueando neste mundo
que, agora, só de si, até já tem a sua graça.


André Gameiro

Tínhamos a mesma idade,
crescemos sempre juntas - como duas irmãs.
Ajudei-a em todas as fases da doença,
fui a primeira pessoa a quem contou
e ouvi tudo o que precisava de dizer a alguém,
por mais que me custasse a mim ouvir.

É das imagens mais fortes que tenho gravadas
na minha memória...
Agarraste-te a mim a chorar com todas
as tuas forças quando já nem as tinhas
e eu não sabia o que dizer.

A doença foi-se alastrando e eu sempre ali tão perto...
Sem poder fazer nada!
Mostravas-me o teu corpo após cada operação
e eu dava-te ânimo dizendo que não estava mal
como tu sempre achavas que estava,
mas tu duvidavas sempre...

Ainda me lembro de quando
estavas por casa sem a peruca
e eu te visitava sem aviso prévio.
Por toda a casa corrias,
fugindo de mim...
Só para que não te visse assim!
Só porque achavas que estavas mal...
Achavas sempre que estavas mal...
Tu continuavas linda!

Já partiste há dois anos e meio
e ainda não acredito que aconteceu.

Teresa Madeira


Cartas a todos nós XVI


Estamos a 22 de Novembro de 1980.
Ela chega à Suiça passado dias de viagem num autocarro.
Têm de a acordar.
Fora do autocarro chove como ela nunca viu e troveja.
Sente vontade de se deixar ficar no autocarro
 com esperança que este volte à Guarda.
Respira fundo.
- 1, 2 , 3...
Saí. 
Por norma cobriria a cabeça
 com as mãos instintivamente,
 mas estas estão carregadas.

Corre até encontrar um tecto 
onde se salvaguardar a si
 e ao que carrega consigo.

Trás sacos, comida em especial para o filho, 
alguma roupa para ambos. 
Porque no braço direito 
carrega o filho de dois anos 
que tal como ela foi abandonado pelo homem.
Ambos têm frio e encolhem-se com medo.
Tudo à volta é desconhecido.

Mas há que ser rápidos!
Há um trabalho para arranjar 
e uma casa também.
Não vai ser fácil.
Mas ela não esperava facilidades.


Lucinda Matos

Cartas a todos nós XVII




Veste um vestido vermelho de costas abertas, 
que costas tão perfeitinhas!

Nos pés trás uns belos saltos pretos,
deixam-lhe umas belas pernas, belo rabo.

O cabelo bem penteado, louro como ouro, 
apanhado com tranças e molas 
formando desenhos. 

Caminha à minha frente e aí!
 Que vontade de lhe tocar! 
Lhe passar a mão pelas costas, 
as arranhar. 

Ao mesmo tempo, 
questiono-me sobre a sua vida.
Leva uma pasta muito formal 
por baixo do braço,
será advogada?

Gostava que ela olhasse,
 trocássemos olhares...

Acelero o passo, 
passo por ela, 
olho para trás.

Nota-se nos traços,
era um ele.

Igor Feitor





Cartas a todos nós XIX


Estou morta... 

A minha vida acabou 

Porque é que vocês insistem?

Parem!
Parem tudo!
Aceitem!
Morri...

Eu realmente não sei como se diz...
Como se diz a um marido

e aos nossos filhos 
"Desistam de mim",

mas vou tentar assim:

Por mais que queiram acreditar 
eu já não estou viva,

já não estou realmente, 
acreditem!


Vocês sabem como sou...

Para mim viver é passear, viajar, ouvir boa música,
dar-vos mimos, cozinhar para vocês e com vocês...
Não vêem que já não posso fazer nada disso?

Sobrevivo ligada a uma máquina.

Como é isso viver?

Filha lembras-te de quando foste operada?

Para te retirarem o apêndice...
Tu só dizias que querias fechar os olhos e não acordar mais,
de tantas dores que tinhas...
No fim da operação fomos ao Santini
comer três enormes bolas de gelado cada uma.

Sei que acreditas que é o que vamos voltar a fazer...

Gostava de acreditar também.
Mas não vai filha...
Não vai! Desculpa!

Não sabem

(vocês não tem noção)
o quanto me custa ver-vos nesta angústia,
virem aqui e ficarem aí sentados a olhar para mim.
Neste sítio...
Neste sítio que cheira a hospital, porque , de facto, o é.


Não aguento ver-vos com essa esperança 

de que um dia subitamente tudo vai ficar bem.

Quero que sigam as vossas vidas!
O mais rápido possível!
Já passaram dois anos...
Já chega!


Estão a perder o vosso tempo,
a perder a vossa própria vida
por algo que já não é vida.


Já nem sou eu.
É só uma máquina nesta sala e um corpo não morto,
mas também não vivo...
Sou nada!
E estou farta!
Não quero mais não ser nada!

Por mais que custe,
desistam!
Desistam agora!

Vou propor o seguinte :
Desliguem as máquinas e vivam.
Vivam muito!
Eu deixarei de ser este nada que perdem tempo a observar
e serei a mãe feliz,
olhando-vos,
de longe ou de perto,
viverem a vossa vida.

Matem este nada!
Deixem-me ser algo!
Deixem-me viver de outra forma!
Desliguem as máquinas!
Por favor! Imploro-vos!
Desliguem as máquinas!
Desliguem as máquinas!


Com muito carinho desde ser que já não o é.

Sempre vossa mãe.


Cartas a todos nós XX 

 Toda a semana senti um cheiro insuportável lá por casa - tabaco. 
Reclamei sempre. 
A minha filha de 18 anos dizia-me, com a maior das confianças e á vontade,que tinha tido amigos lá por casa na noite anterior e de facto não era difícil de acreditar.
 Havia sempre muitos copos e garrafas vazias, uma grande desarrumação... A cara dela de ressaca no dia seguinte também tornava tudo bastante convincente.

 Um dia cheguei a casa e ao contrário dos dias anteriores já não cheirava a tabaco, mesmo assim havia um maço em cima da mesa da cozinha.
 Esta estava caótica, até com mobília fora do sitio. Mas eu nem quis saber da desarrumação. O meu foco era aquele maço de tabaco praticamente cheio. Recusava-me a acreditar que a minha menina fumava. Não podia ser dela! 

Corri em direcção ao quarto dela e abri a porta de rompante. Lá estava ele! Abraçados um ao outro com um ar muito descansado. Nunca o tinha visto antes. Só consegui dizer "Bem me parecia! Bom dia" com um grande sorriso. Não consegui disfarçar a minha felicidade . 

Ela deve ter ficado meio confusa, mas não me pareceu preocupada. Quando ela se levantou disse-lhe que tinha visto o maço na cozinha. Calculo que só ai ela tenha percebido a minha atitude feliz de detective que resolveu um grande mistério. Envergonho-me um pouco por essa felicidade infantil daquele dia, do tipo "apanhei-te". Deve ter pensado que não confiava nela. Nem bati à porta. Invadi-lhe assim de rompante o seu quarto, mas, principalmente, a sua privacidade, só para me certificar que ela continuava a ser a minha menina e que aquele maço de tabaco não era dela. E ainda fiquei feliz o resto do dia. 

Ainda me arrependo passado todos estes anos. Nem nunca tive coragem de lhes pedir desculpa.

 Eles não parecem importados, pelo menos riem-se sempre quando conto a história em almoços de amigos e família. Não me farto de a contar, todos parecem gostar. 

Só espero não dar ideias aos meus netos. 

(Há 10 anos ela disse-me que era só um amigo, hoje tenho o prazer de lhe chamar genro. E sei que ela nunca fumou)


Vítor Sousa



Não me lembro da última vez que dormimos agarrados um ao outro.
A verdade é que nem tenho vontade de o fazer, apesar de me lembrar que é uma sensação reconfortante.
Já não te amo e, certamente, tu também já não me amas. Mas não leves a peito, nem de mim gosto por esta altura.
Gosto do nosso filho. E é nele que penso. Tenho-lhe um amor incondicional e incalculável, é tão bom o prazer de olhar para um ser humano e poder pensar “fui eu que fiz isto”, pensar que está ali bem presente a continuação do nosso ADN. Acredito que este seja um sentimento que partilhemos. Talvez também seja isso que te faz ficar.
Mas que situação tão desagradável fingir que se ama -  ou melhor dizendo : ignorar que se deixou de amar. Continuar a festejar anos de casamento quando já só desejo que ele termine. Dias dos namorados quando já não há amor. Dar as mãos só porque parece bonito e fofinho. Questiono-me muitas vezes quanto tempo mais conseguirei fazê-lo.
Porém sou te tão grata por teres trazido ao mundo comigo este belo menino. Grata por ele ter o teu sorriso, os teus lindos caracóis… Aquela pele branquinha. Foi, sem dúvida, feito com amor.
Sou te grata por teres estado comigo em tantos momentos difíceis da minha vida. Grata pelo amor que senti por ti, grata pelo amor que sentias e pelas raras vezes que o mostravas. E é por te estar grata que me sinto obrigada a ficar. É pelo nosso filho e por um futuro normal para ele.
Será também por isso que ficas? Será por ser cómodo? E até quando durará?

Paula Sousa

Cartas a todos nós XXII

Mais do que sentir felicidade por ter um novo membro na família, sinto orgulho.
Orgulho por aquela miúda, com quem tinha lutas de puxar cabelos, ser hoje uma mulher.
Mais do que ficar derretida com o papel de tia e porque, obviamente, ele é lindo, fico derretida ao ver a maneira como ela o agarra, o embala, lhe acalma o choro.
Admiro a calma que ela consegue ter ou transparecer nos momentos mais nervosos.
Admiro ela hoje ser mãe e mulher.
Estar crescida.

Teresa

Cartas a todos nós XXIII

São 7 horas da manhã e não consigo dormir.
Um dia para o fazer limitar-me-ei
a enfiar uma bala na minha própria cabeça
e assim nunca mais saberei
o que é não conseguir dormir.

Nunca mais saberei o que é acordar sozinho
numa manhã de nevoeiro.
Nunca mais saberei o que é acordar cedo,
esticar a mão para o meu lado esquerdo da cama
 e sentir o vazio mesmo ao meu lado.
Não me perturbará na casa toda esta calma.
Nunca mais me incomodará este silêncio tão turbulento.
Nunca mais sentirei este  vazio na alma.
Juro. Mais ainda! Prometo!
Nada mais me incomodará.

Cartas a todos nós XIV

Apetece-me beber.
Apetece-me beber quando estou triste
e apetece-me beber quando estou feliz.
Há que comemorar!

Apetece-me beber quando estou sozinho
e apetece-me beber com amigos.
Por vezes vou ter com eles só mesmo porque me apetece beber.
Por vezes bebo para fazer amigos.

Apetece-me beber a ver a bola,
 a comer hambúrguer,
cachorro, francesinha e, claro, caracóis.
Mas toda a altura parece boa para festejar.

Apetece-me beber para esquecer,
beber para pensar,
beber para não pensar.

Apetece-me beber para testar os meus limites
e beber e beber e beber assim, assim sem parar, assim sem pensar.


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